segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A saga da aviação da Amazônia

 
Apolonildo Britto
 

Até o final da década de 50 a Amazônia encontrava-se praticamente sitiada pela sua exuberante floresta, pela Cordilheira dos Andes e pelos planaltos Central e das Guianas. Somente o oceano Atlântico, os inumeráveis rios e as raras estradas existentes serviam de acesso à sua população ainda tipicamente ribeirinha, salvo àquela ligada pelas inexpressíveis redes ferroviárias de Bragança (Pará), Guajará-Mirim (Rondônia) e Serra do Navio (Amapá), ou pelo então incipiente transporte aéreo, com destaque para os hidroaviões que ousavam a servir as comunidades fluviais.


O Syndicato Condor, subsidiária da Lufthansa no Brasil, o consórcio Pan Am/Panair do Brasil, a NAB – Navegação Aérea Brasileira, o Loide Aéreo Brasileiro, a Cruzeiro do Sul foram empresas aéreas fundamentais nesse período pioneiro, mas coube à aviação particular a histórica tarefa de desbravar os sertões amazônicos, abastecer as cidades de gêneros alimentícios durante a escassez e apoiar o extrativismo local. A FAB (Força Aérea Brasileira), preconizada pelo legendário CAN – Correio Aéreo Nacional, originalmente denominado Serviço Postal Aéreo Militar (1931), também desempenhou com destaque este papel pioneiro, sendo fundamental para a formação de pilotos e abrindo perspectivas para essa nova modalidade de transporte. A aviação deu ainda o suporte necessário e imprescindível para a implantação das grandes rodovias regionais (Belém-Brasília, Transamazônica, Santarém-Cuiabá, Macapá-Oiapoque, PA-150, Calha Norte), grandes projetos (Hidrelétrica de Tucurui, Carajás, Mineração Rio do Norte, Zona Franca de Manaus) e inumeráveis fazendas na Amazônia.

Esta faina histórica, entretanto, transcendeu o corporativismo empresarial e institucional que hoje domina o setor aéreo, tendo cara, nome e sobrenome, como o do legendário Capitão Muniz, Adalberto Nogueira Kovacs, Antonio Silmo Arruda, Sidney Polly, Munur Yurtsever (Mikey), Atlas Brasil Catanhede, Comandante Adão e tantos outros que ousaram vencer o isolamento, as distâncias e as adversidades regionais nas asas do avião. Neste elenco de desbravadores alados destacamos o pioneiro Antonio Duarte Brito, o popular Tote Brito, que mesmo sem ser piloto teve um dos mais relevantes papeis na aviação regional, pois foi praticamente o primeiro a mostrar a eficácia da aviação para explorar os recursos naturais da Amazônia, construindo campos-de-pouso em plena floresta, além de ter atraído centenas de aviões e aviadores para a região, que promoveram o desbravamento de sertões antes despovoadas e totalmente esquecidos.

Alto, magro, lúcido, elétrico, altivo, incomum e profundo conhecedor da vida e dos problemas amazônicos, assim era Tote Brito até aos 82 anos, idade em que faleceu. Era um homem que já fizera de quase tudo na Região – foi comerciante, pecuarista, agricultor, extrativista, proprietário de frotas de aviões e barcos, além de outras coisas mais. Contudo, o grande sonho acalentado pelo velho pioneiro era mesmo explorar as riquezas naturais das Guianas Brasileiras e criar gado nos longínquos e fronteiriços “campos gerais”, não obstante a idade e a pobreza, depois de ter sido “O Homen dos Milhões”.

A saga desse velho desbravador, cujas lutas avançaram no tempo e ajudaram a desenvolver a Amazônia, vale ser registrada como exemplo e para que não se perca na poeira do tempo, como, aliás, sempre tem acontecido em nosso país desmemoriado. Ele é ainda muito lembrado na cidade paraense de Alenquer e em toda a região do Médio-Amazonas, como Tote Brito, um dos pioneiros daquela área e velho sonhador, que morreu em 1988, acalentando o mesmo sonho de colonizar as Guianas Brasileiras, explorar suas riquezas naturais e criar gado nos “campos gerais”, conforme confidencias aos poucos amigos que possuía.

Dizem que ele fora muito rico, mas passou seus últimos dias na pobreza, cheio de sonhos e recordações. O seu nome de batismo é Antonio Duarte Brito e aos amigos fazia questão fechada de mostrar, orgulhosamente, as duas medalhas de puro ouro que lhe foram outorgadas pela Câmara Municipal e Prefeitura de Alenquer, concedendo-lhe os títulos de Cidadão Benemérito de Alenquer e de Bandeirante das Guianas Brasileiras, que representam um período de glória para ele e para a sua terra natal – Alenquer.

Ele tentou, por todos os meios de que dispunha, obter apoio para construir pistas-de-pouso e e implantar fazendas de gado nas várzeas e cerrados no coração da Amazônia; procurou em vão sensibilizar as autoridades da época para o seu plano; chegou até falar com o presidente Getúlio Vargas sobre o assunto. Mas malhou com ferro frio durante décadas, e nada...

Desistir? Jamais! Sua persistência o levou, em meados dos anos 50, a dois grandes investidores amazonenses: Isac Sabbá e Isac Benzecry, homens que hoje fazem parte da historia da região. Ambos, na verdade, voltados pelo interesse da produção de balata, castanha-do-pará e outros produtos extrativistas da região envolvidos no projeto de Tote Brito, vislumbraram a sua viabilidade e o financiaram, com contratos de produção de balata, que se transformaram sementes da realização do grande sonho.

Iniciada a construção da primeira pista-de-pouso, o Campo do Confusão, no alto rio Curuá. Em pouco mais de dois anos o extrativismo regional do produto cresceu vertiginosamente, chegando a 40% da média mundial da produção de balata, cujo preço estava no ápice. O sucesso desta primeira experiência de Tote Brito o fez investir todos os recursos na construção de sete outros campos de pouso na floresta dos altos rios Paru, Jarí, Maicuru, Curuá e Cuminá, todos no Estado do Pará, que serviriam de base para a colonização dos campos gerais e para exploração de balata, castanha do Pará, óleos vegetais e minérios, contando a partir de então com o apoio de seu irmão, Ramiro Britto.

A partir daí outros recursos naturais foram explorados com a modalidade inovadora, minérios descobertos, fazendas implantadas, estradas construídas, projetos executados, hidrelétricas e novas cidades surgiram onde antes somente imperava a solidão, o abandono e a descrença. A experiência deu resultados satisfatórios e teve o efeito do “Ovo de Colombo”, porque novas perspectivas se abriram com a utilização do avião para a exploração dos recursos naturais da Amazônia, fazendo com que as pistas de pouso se multiplicassem no coração da floresta, atraindo revoadas de aeronaves de todos os tipos e tamanhos, que ajudaram a implantar a civilização nos sertões amazônicos.

A eficácia da aviação na Amazônia deve ser entendida pelo que ela representou para a produção da balata (tipo de látex da família das sapotáceas, que tem como produto principal a guta-percha), pois para se chegar á região dos balatais eram necessários meses de viagem através de perigosas cachoeiras e florestas, ocasionando perda de tempo, mercadorias e até de vidas humanas, o que contribuía sensivelmente para o custo e queda de produção na região. Consciente do problema e o que isto representava para a economia dos municípios de Alenquer, Monte Alegre e Almeirim, principais produtores de balata, desde jovem, durante suas andanças por todo o País, Tote Brito sempre viu na aviação a solução ideal para superar as distancias e vencer a inóspita selva amazônica, repleta de perigos e endemias. Vislumbrou que, com a construção de campos-de-pouso reduziria as longas e perigosas viagens a minutos de vôo, ganhando safras mais longas e produções maiores e mais baratas para os produtores, além de poupar mercadorias e preciosas vidas humanas. Foi com essa visão que Tote Brito sedimentou o ideal que perseguiu durante décadas, recorrendo em vão a políticos e empresários.

Narrando as suas aventuras e desventuras, o velho e destemido pioneiro confidenciava não lamentar ter jogado fora toda a sua fortuna no negócio da balata, na construção de campos-de-pouso no meio do jângal bruto, na aquisição de aviões, no patrocínio de pilotos e na pesquisa das riquezas existentes no Planalto das Guianas, as quais jamais usufruiu. Só teve magoa das autoridades de então, que não lhe deram ouvidos nem o apoio necessário, além de nada fazer em defesa da economia regional. No entanto, graças a sua fé inabalável nos projetos que acalentou para a região durante 40 anos, apoiada mais tarde por dois judeus amazonenses, conseguiu mostrar o que ninguém acreditava, que a aviação pudesse ajudar o desbravamento da Amazônia e a exploração das suas riquezas naturais a exemplo do que se verificou nos garimpos de ouro de Serra Pelada, Tapajós, Cumaru, Caciporé, Surucucu, inclusive de cassiterita em Rondônia, tantalita no Amapá e cristal de rocha e pedras preciosa em Goiás e em Mato Grosso. Isso sem falar na prospecção dos minérios de Carajá e na implantação dos grandes projetos regionais.

Tote Brito dizia que a partir de sua iniciativa a aviação se tornou, sem sombra de duvida, num dos mais importantes instrumentos de desenvolvimento regional. E esclarecia: “como a Amazônia é uma região de tamanho continental, com densas florestas equatoriais e vastos espaços alagados, a conquista do seu território e a exploração de suas riquezas naturais foram mais difíceis e demoradas. Por outro lado, também influiu negativamente, para o seu isolamento regional o preconceito difundido pela literatura, que dela fazia um Inferno Verde com todos os ingredientes para causticar os que ousassem conquista-la”.

Depois de uma breve pausa, o rijo bandeirante prosseguia a narrativa: a idéia de Inferno Verde, paraíso da malaria e das terçãs malignas, povoada por cruéis caçadores de cabeça, vorazes boiúnas e terríveis curupiras que devoravam os incautos exploradores, se não isolou a Amazônia do resto do mundo e até mesmo do Brasil, pelo menos dificultou a sua integração á civilização. Ele era de opinião que esse isolamento absoluto, entretanto, só durou até século XIX, quando o norte americano Charles Goodyear e o inglês Thomas Hancok desenvolveram técnicas de vulcanização da borracha (muito abundante na Amazônia, na época) que passou a ser industrializada e ganhou o mercado mundial.

Antonio Brito aproveitava então o assunto para abordar o problema do extrativismo, acrescentando que ele foi um mal necessário, visto que determinou a história e a vida das populações amazônicas desde os primórdios da sua colonização, quando portugueses e espanhóis aqui buscavam as chamadas especiarias (drogas do sertão) e escravizavam índios até os dias atuais, com a extração de madeira, com a garimpagem e com a caça e a pesca. Demonstrando possuir extraordinária memória e muita lucidez, o velho lutador falava do passado e dizia que até á década de 40, dava-se o luxo de dizer que a região dormia em berço esplendido, sonhando ainda com o projeto desnacionalizante dos Grandes Lagos Amazônicos, elaborado por Hermann Kahn, do Institute Hudson, de Nova York, a serviço do Departamento de Estado dos Estados Unidos.

O projeto visava resolver o problema da navegação fluvial, escoar os minérios do Tapajós e gerar energia com a construção de uma mega usina hidrelétrica, que seria a maior do mundo, além controlar as enchentes do Amazonas com construção de uma gigantesca barragem em Monte Alegre, formando um imenso lago que inundaria as cidades de Santarém, Alenquer, Òbidos e outras tantas. Planejou-se ainda desviar as águas dos rios Solimões e Amazonas para irrigar a região Brasil Central e acabar com a seca do Nordeste. Outros sonhavam com o retorno de um novo ciclo extrativista como fora o da borracha.

Segundo o pioneiro, a aviação, mudou esse quadro de ilusão á medida que ganhou os espaços e passou a desenhar uma nova realidade regional com a exploração de recursos naturais, a construção das rodovias de integração nacional e a implantação dos atuais grandes projetos. “Mas foram os velhos Patas Chocas, como carinhosamente os pilotos tratavam o PBY (Catalinas), que a aviação ganhou os céus, os rios, os sertões e a confiança dos amazônidas, abrindo novas perspectivas para a integração regional, prestando assistência a suas populações e criando novas fronteiras para o desenvolvimento”, arrematava com saudades.

Para ele o abastecimento aéreo das principais cidades (que era muito precário na ocasião por causa das distâncias ou enchentes, e falta de alimentos) foi outra fase importante da aviação. Citava como exemplo Belém, Manaus, Porto Velho e Rio Branco do Acre, que durante certa época do ano faltava tudo. Carne bovina, açúcar, café, hortigranjeiros virava até caso de policia. Para suprir essas necessidades, surgiu a aviação como alternativa para o abastecimento do mercado regional. No entanto o preço por esta façanha foi muito alto para uns, por que vários deles pagou com a própria vida a glória de voar como os pássaros e pelos relevantes serviços prestados á comunidade. Lembrou entre tantos, Pedro Steiner e Silmo Arruda como dois desses heróis anônimos. Pedro Steiner morreu ao voltar da cidade de Pedro Afonso (GO), com um carregamento de carne. O avião em que viajava (C-46) perdeu um motor e o outro não lhe sustentou em vôo, obrigando-o a fazer um pouso forçado num pântano, que acreditou ser clareira. Silmo Arruda desapareceu em plena floresta próximo a Manaus com seu quadrimotor Contelation, quando retornava de viagem de abastecimento de gêneros alimentícios de Rio Branco do Acre.

“Outra empresa que igualmente marcou a história da aeronavegação amazônica foi a Paraense Transportes Aéreos, inexplicavelmente extinta pelas autoridades da revolução de 31 de março de 1964. O motivo apresentado não convenceu ninguém, como era comum naquela época, pois a PTA (como era conhecida nacionalmente) estabeleceu por décadas uma autentica ponte aérea entre a região e o resto do Pais, transportando cargas e passageiros, além de integrar a Amazônia brasileira de leste a oeste”, enfatizou Tote Brito.

Data da década de 30 a presença do avião nas pastagens de Marajó e este fato foi importante para a administração das fazendas ali localizadas, cujos proprietários em geral moravam em Belém. E assim nasceu o serviço de táxi aéreo no Brasil: de forma espontânea e de fretamentos ocasionais evoluindo até ao estabelecimento de linhas regulares, no caso da Amazônia no interior do Maranhão, de Goiás, de Rondônia e do Pará.

O capitão Muniz, com o seu velho Junker (semelhante a um caixote de alumínio), surgiu dessa maneira, instituindo linhas para o norte do Maranhão e para o sul do Pará.

Adalberto Nogueira Kovacs também apareceu assim, implantando linhas regulares no interior do Pará, hoje mantidas pelo Táxi Aéreo Kovacs. Do mesmo modo a dupla Gaudêncio (falecido em vôo) e Gracimar criou o Táxi Aéreo Aliança que serviu às linhas do Maranhão durante décadas. Outra dupla pioneira, Munur (Mickey) Yurtsever e Apolonildo Brito (filho de Tote Brito), organizou o Táxi Aéreo Rondônia Ltda, em Porto Velho, para o transporte de cassiterita e de passageiros.

O trabalho dos helicópteros no apoio de terra e nas plataformas da Petrobras não foi omitido pelo velho desbravador, o qual ensinava que jamais se construiriam as rodovias e se explorariam os garimpos se não fosse a viação: Dez ou 20 quilômetros de mata bruta representam horas e até dias de viagem com carga nas costas, subindo e descendo serras, com demanda de tempo e de dinheiro.

Por isso, o apoio aéreo foi importantíssimo para superar as dificuldades existentes na região com o lançamento de gêneros alimentícios, equipamentos e medicamentos nas clareiras no seio da selva virgem e localizadas graças à perícia dos pilotos e à fumaça acesa no interior delas, já que a floresta amazônica é uniforme e sem referências visuais.

“Assim foram construídas as minhas pistas de pouso, as rodovias, as hidrelétricas, as fazendas, os garimpos, os grandes projetos da Amazônia. Enfim, o progresso e o desenvolvimento vieram mesmo nas asas das aeronaves e na coragem desses desbravadores desta região continental”, concluía o audaz pioneiro.

Continuando, mostrando uma das fotos que sempre trazia consigo, dizia com uma entonação de orgulho e já cansada voz: “essa aqui foi tirada a 25 de maio de 1968, dia em que levei a FAB ao Anatum II (hoje Aldeia Bona), pista que construí no alto rio Paru do Oeste, para colonizar os campos gerais ali existentes, excelentes para a criação de gado. Também levei animais por vias aéreas: de uma só vez, transportei 39 bacorinhos (leitões) num pequeno avião Bonanza B-35, para fazer criação numa ilha localizada próximo á pista do Anatum I, a 30 minutos de vôo abaixo do Anatum II, também de minha propriedade”.

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