A saga da aviação da Amazônia
Apolonildo Britto
Até
o final da década de 50 a Amazônia encontrava-se praticamente sitiada pela sua
exuberante floresta, pela Cordilheira dos Andes e pelos planaltos Central e
das Guianas. Somente o oceano Atlântico, os inumeráveis rios e as raras
estradas existentes serviam de acesso à sua população ainda tipicamente
ribeirinha, salvo àquela ligada pelas inexpressíveis redes ferroviárias de Bragança
(Pará), Guajará-Mirim (Rondônia) e Serra do Navio (Amapá), ou pelo então
incipiente transporte aéreo, com destaque para os hidroaviões que ousavam a
servir as comunidades fluviais.
O
Syndicato Condor, subsidiária da Lufthansa no Brasil, o consórcio Pan Am/Panair do
Brasil, a NAB – Navegação Aérea Brasileira, o Loide Aéreo Brasileiro, a Cruzeiro
do Sul foram empresas aéreas fundamentais nesse período pioneiro, mas coube à
aviação particular a histórica tarefa de desbravar os sertões amazônicos,
abastecer as cidades de gêneros alimentícios durante a escassez e apoiar o
extrativismo local. A FAB (Força Aérea Brasileira), preconizada pelo legendário
CAN – Correio Aéreo Nacional, originalmente denominado Serviço Postal Aéreo
Militar (1931), também desempenhou com destaque este papel pioneiro, sendo
fundamental para a formação de pilotos e abrindo perspectivas para essa nova
modalidade de transporte. A aviação deu ainda o suporte necessário e
imprescindível para a implantação das grandes rodovias regionais (Belém-Brasília,
Transamazônica, Santarém-Cuiabá, Macapá-Oiapoque, PA-150, Calha Norte), grandes
projetos (Hidrelétrica de Tucurui, Carajás, Mineração Rio do Norte, Zona Franca
de Manaus) e inumeráveis fazendas na Amazônia.
Esta
faina histórica, entretanto, transcendeu o corporativismo empresarial e
institucional que hoje domina o setor aéreo, tendo cara, nome e sobrenome, como
o do legendário Capitão Muniz, Adalberto Nogueira Kovacs, Antonio Silmo Arruda,
Sidney Polly, Munur Yurtsever (Mikey), Atlas Brasil Catanhede, Comandante Adão
e tantos outros que ousaram vencer o isolamento, as distâncias e as adversidades
regionais nas asas do avião. Neste elenco de desbravadores alados destacamos o
pioneiro Antonio Duarte Brito, o popular Tote Brito, que mesmo sem ser piloto
teve um dos mais relevantes papeis na aviação regional, pois foi praticamente o
primeiro a mostrar a eficácia da aviação para explorar os recursos naturais da Amazônia,
construindo campos-de-pouso em plena floresta, além de ter atraído centenas de aviões
e aviadores para a região, que promoveram o desbravamento de sertões antes
despovoadas e totalmente esquecidos.
Alto, magro, lúcido, elétrico, altivo, incomum e
profundo conhecedor da vida e dos problemas amazônicos, assim era Tote Brito até
aos 82 anos, idade em que faleceu. Era um homem que já fizera de quase tudo na Região – foi
comerciante, pecuarista, agricultor, extrativista, proprietário de frotas de
aviões e barcos, além de outras coisas mais. Contudo, o grande sonho acalentado
pelo velho pioneiro era mesmo explorar as riquezas naturais das Guianas
Brasileiras e criar gado nos longínquos e fronteiriços “campos gerais”, não
obstante a idade e a pobreza, depois de ter sido “O Homen dos Milhões”.
A saga desse velho desbravador, cujas lutas avançaram
no tempo e ajudaram a desenvolver a Amazônia, vale ser registrada como exemplo
e para que não se perca na poeira do tempo, como, aliás, sempre tem acontecido
em nosso país desmemoriado. Ele é ainda muito lembrado na cidade paraense de
Alenquer e em toda a região do Médio-Amazonas, como Tote Brito, um dos
pioneiros daquela área e velho sonhador, que morreu em 1988, acalentando o
mesmo sonho de colonizar as Guianas Brasileiras, explorar suas riquezas
naturais e criar gado nos “campos gerais”, conforme confidencias aos poucos
amigos que possuía.
Dizem que ele fora muito rico, mas passou seus últimos
dias na pobreza, cheio de sonhos e recordações. O seu nome de batismo é Antonio
Duarte Brito e aos amigos fazia questão fechada de mostrar, orgulhosamente, as
duas medalhas de puro ouro que lhe foram outorgadas pela Câmara Municipal e
Prefeitura de Alenquer, concedendo-lhe os títulos de Cidadão Benemérito de Alenquer e de Bandeirante das Guianas Brasileiras, que representam um período de
glória para ele e para a sua terra natal – Alenquer.
Ele tentou, por todos os meios de que dispunha, obter
apoio para construir pistas-de-pouso e e implantar fazendas de gado nas várzeas
e cerrados no coração da Amazônia; procurou em vão sensibilizar as autoridades
da época para o seu plano; chegou até falar com o presidente Getúlio Vargas
sobre o assunto. Mas malhou com ferro frio durante décadas, e nada...
Desistir? Jamais! Sua persistência o levou, em meados
dos anos 50, a
dois grandes investidores amazonenses: Isac Sabbá e Isac Benzecry, homens que hoje
fazem parte da historia da região. Ambos, na verdade, voltados pelo interesse
da produção de balata, castanha-do-pará e outros produtos extrativistas da
região envolvidos no projeto de Tote Brito, vislumbraram a sua viabilidade e o
financiaram, com contratos de produção de balata, que se transformaram sementes
da realização do grande sonho.
Iniciada a construção da primeira pista-de-pouso, o Campo
do Confusão, no alto rio Curuá. Em pouco mais de dois anos o extrativismo
regional do produto cresceu vertiginosamente, chegando a 40% da média mundial
da produção de balata, cujo preço estava no ápice. O sucesso desta primeira
experiência de Tote Brito o fez investir todos os recursos na construção de
sete outros campos de pouso na floresta dos altos rios Paru, Jarí, Maicuru,
Curuá e Cuminá, todos no Estado do Pará, que serviriam de base para a
colonização dos campos gerais e para exploração de balata, castanha do Pará,
óleos vegetais e minérios, contando a partir de então com o apoio de seu irmão,
Ramiro Britto.
A partir daí outros recursos naturais foram explorados
com a modalidade inovadora, minérios descobertos, fazendas implantadas,
estradas construídas, projetos executados, hidrelétricas e novas cidades
surgiram onde antes somente imperava a solidão, o abandono e a descrença. A
experiência deu resultados satisfatórios e teve o efeito do “Ovo de Colombo”, porque
novas perspectivas se abriram com a utilização do avião para a exploração dos
recursos naturais da Amazônia, fazendo com que as pistas de pouso se multiplicassem
no coração da floresta, atraindo revoadas de aeronaves de todos os tipos e
tamanhos, que ajudaram a implantar a civilização nos sertões amazônicos.
A eficácia da aviação na Amazônia deve ser entendida
pelo que ela representou para a produção da balata (tipo de látex da família
das sapotáceas, que tem como produto principal a guta-percha), pois para se
chegar á região dos balatais eram necessários meses de viagem através de
perigosas cachoeiras e florestas, ocasionando perda de tempo, mercadorias e até
de vidas humanas, o que contribuía sensivelmente para o custo e queda de produção
na região. Consciente do problema e o que isto representava para a economia dos
municípios de Alenquer, Monte Alegre e Almeirim, principais produtores de
balata, desde jovem, durante suas andanças por todo o País, Tote Brito sempre
viu na aviação a solução ideal para superar as distancias e vencer a inóspita
selva amazônica, repleta de perigos e endemias. Vislumbrou que, com a
construção de campos-de-pouso reduziria as longas e perigosas viagens a minutos
de vôo, ganhando safras mais longas e produções maiores e mais baratas para os
produtores, além de poupar mercadorias e preciosas vidas humanas. Foi com essa
visão que Tote Brito sedimentou o ideal que perseguiu durante décadas,
recorrendo em vão a políticos e empresários.
Narrando as suas aventuras e desventuras, o velho e
destemido pioneiro confidenciava não lamentar ter jogado fora toda a sua
fortuna no negócio da balata, na construção de campos-de-pouso no meio do
jângal bruto, na aquisição de aviões, no patrocínio de pilotos e na pesquisa
das riquezas existentes no Planalto das Guianas, as quais jamais usufruiu. Só
teve magoa das autoridades de então, que não lhe deram ouvidos nem o apoio
necessário, além de nada fazer em defesa da economia regional. No entanto, graças
a sua fé inabalável nos projetos que acalentou para a região durante 40 anos,
apoiada mais tarde por dois judeus amazonenses, conseguiu mostrar o que ninguém
acreditava, que a aviação pudesse ajudar o desbravamento da Amazônia e a
exploração das suas riquezas naturais a exemplo do que se verificou nos
garimpos de ouro de Serra Pelada, Tapajós, Cumaru, Caciporé, Surucucu, inclusive
de cassiterita em Rondônia, tantalita no Amapá e cristal de rocha e pedras
preciosa em Goiás e em Mato Grosso. Isso sem falar na prospecção dos minérios
de Carajá e na implantação dos grandes projetos regionais.
Tote Brito dizia que a partir de sua iniciativa a
aviação se tornou, sem sombra de duvida, num dos mais importantes instrumentos
de desenvolvimento regional. E esclarecia: “como a Amazônia é uma região de
tamanho continental, com densas florestas equatoriais e vastos espaços
alagados, a conquista do seu território e a exploração de suas riquezas
naturais foram mais difíceis e demoradas. Por outro lado, também influiu
negativamente, para o seu isolamento regional o preconceito difundido pela
literatura, que dela fazia um Inferno Verde com todos os ingredientes para
causticar os que ousassem conquista-la”.
Depois de uma breve pausa, o rijo bandeirante prosseguia
a narrativa: a idéia de Inferno Verde, paraíso da malaria e das terçãs
malignas, povoada por cruéis caçadores de cabeça, vorazes boiúnas e terríveis
curupiras que devoravam os incautos exploradores, se não isolou a Amazônia do
resto do mundo e até mesmo do Brasil, pelo menos dificultou a sua integração á
civilização. Ele era de opinião que esse isolamento absoluto, entretanto, só
durou até século XIX, quando o norte americano Charles Goodyear e o inglês
Thomas Hancok desenvolveram técnicas de vulcanização da borracha (muito
abundante na Amazônia, na época) que passou a ser industrializada e ganhou o
mercado mundial.
Antonio Brito aproveitava então o assunto para abordar
o problema do extrativismo, acrescentando que ele foi um mal necessário, visto
que determinou a história e a vida das populações amazônicas desde os
primórdios da sua colonização, quando portugueses e espanhóis aqui buscavam as
chamadas especiarias (drogas do sertão) e escravizavam índios até os dias
atuais, com a extração de madeira, com a garimpagem e com a caça e a pesca. Demonstrando
possuir extraordinária memória e muita lucidez, o velho lutador falava do
passado e dizia que até á década de 40, dava-se o luxo de dizer que a região
dormia em berço esplendido, sonhando ainda com o projeto
desnacionalizante dos Grandes Lagos Amazônicos, elaborado por Hermann Kahn, do
Institute Hudson, de Nova York, a serviço do Departamento de Estado dos Estados
Unidos.
O projeto visava resolver o problema da navegação
fluvial, escoar os minérios do Tapajós e gerar energia com a construção de uma mega
usina hidrelétrica, que seria a maior do mundo, além controlar as enchentes do
Amazonas com construção de uma gigantesca barragem em Monte Alegre, formando um
imenso lago que inundaria as cidades de Santarém, Alenquer, Òbidos e outras
tantas. Planejou-se ainda desviar as águas dos rios Solimões e Amazonas para
irrigar a região Brasil Central e acabar com a seca do Nordeste. Outros
sonhavam com o retorno de um novo ciclo extrativista como fora o da borracha.
Segundo o pioneiro, a aviação, mudou esse quadro de
ilusão á medida que ganhou os espaços e passou a desenhar uma nova realidade
regional com a exploração de recursos naturais, a construção das rodovias de
integração nacional e a implantação dos atuais grandes projetos. “Mas foram os
velhos Patas Chocas, como carinhosamente os pilotos tratavam o PBY (Catalinas),
que a aviação ganhou os céus, os rios, os sertões e a confiança dos amazônidas,
abrindo novas perspectivas para a integração regional, prestando assistência a
suas populações e criando novas fronteiras para o desenvolvimento”, arrematava
com saudades.
Para ele o abastecimento aéreo das principais cidades (que
era muito precário na ocasião por causa das distâncias ou enchentes, e falta de
alimentos) foi outra fase importante da aviação. Citava como exemplo Belém,
Manaus, Porto Velho e Rio Branco do Acre, que durante certa época do ano
faltava tudo. Carne bovina, açúcar, café, hortigranjeiros virava até caso de
policia. Para suprir essas necessidades, surgiu a aviação como alternativa para
o abastecimento do mercado regional. No entanto o preço por esta façanha foi
muito alto para uns, por que vários deles pagou com a própria vida a glória de
voar como os pássaros e pelos relevantes serviços prestados á comunidade. Lembrou
entre tantos, Pedro Steiner e Silmo Arruda como dois desses heróis anônimos.
Pedro Steiner morreu ao voltar da cidade de Pedro Afonso (GO), com um
carregamento de carne. O avião em que viajava (C-46) perdeu um motor e o outro
não lhe sustentou em vôo, obrigando-o a fazer um pouso forçado num pântano, que
acreditou ser clareira. Silmo Arruda desapareceu em plena floresta próximo a
Manaus com seu quadrimotor Contelation, quando retornava de viagem de
abastecimento de gêneros alimentícios de Rio Branco do Acre.
“Outra empresa que igualmente marcou a história da
aeronavegação amazônica foi a Paraense Transportes Aéreos, inexplicavelmente
extinta pelas autoridades da revolução de 31 de março de 1964. O motivo
apresentado não convenceu ninguém, como era comum naquela época, pois a PTA (como
era conhecida nacionalmente) estabeleceu por décadas uma autentica ponte aérea
entre a região e o resto do Pais, transportando cargas e passageiros, além de integrar
a Amazônia brasileira de leste a oeste”, enfatizou Tote Brito.
Data da década de 30 a presença do avião nas pastagens de Marajó
e este fato foi importante para a administração das fazendas ali localizadas,
cujos proprietários em geral moravam em Belém. E assim nasceu o serviço de táxi aéreo no
Brasil: de forma espontânea e de fretamentos ocasionais evoluindo até ao
estabelecimento de linhas regulares, no caso da Amazônia no interior do
Maranhão, de Goiás, de Rondônia e do Pará.
O capitão
Muniz, com o seu velho Junker (semelhante a um caixote de alumínio), surgiu
dessa maneira, instituindo linhas para o norte do Maranhão e para o sul do
Pará.
Adalberto
Nogueira Kovacs também apareceu assim, implantando linhas regulares no interior
do Pará, hoje mantidas pelo Táxi Aéreo Kovacs. Do mesmo modo a dupla Gaudêncio
(falecido em vôo) e Gracimar criou o Táxi Aéreo Aliança que serviu às linhas do
Maranhão durante décadas. Outra dupla pioneira, Munur (Mickey) Yurtsever e
Apolonildo Brito (filho de Tote Brito), organizou o Táxi Aéreo Rondônia Ltda, em Porto Velho , para o
transporte de cassiterita e de passageiros.
O trabalho
dos helicópteros no apoio de terra e nas plataformas da Petrobras não foi
omitido pelo velho desbravador, o qual ensinava que jamais se construiriam as
rodovias e se explorariam os garimpos se não fosse a viação: Dez ou 20 quilômetros de
mata bruta representam horas e até dias de viagem com carga nas costas, subindo
e descendo serras, com demanda de tempo e de dinheiro.
Por isso, o apoio aéreo foi importantíssimo para
superar as dificuldades existentes na região com o lançamento de gêneros
alimentícios, equipamentos e medicamentos nas clareiras no seio da selva virgem
e localizadas graças à perícia dos pilotos e à fumaça acesa no interior delas,
já que a floresta amazônica é uniforme e sem referências visuais.
“Assim
foram construídas as minhas pistas de pouso, as rodovias, as hidrelétricas, as
fazendas, os garimpos, os grandes projetos da Amazônia. Enfim, o progresso e o
desenvolvimento vieram mesmo nas asas das aeronaves e na coragem desses
desbravadores desta região continental”, concluía o audaz pioneiro.
Continuando, mostrando uma das fotos que sempre trazia
consigo, dizia com uma entonação de orgulho e já cansada voz: “essa aqui foi
tirada a 25 de maio de 1968, dia em que levei a FAB ao Anatum II (hoje Aldeia
Bona), pista que construí no alto rio Paru do Oeste, para colonizar os campos
gerais ali existentes, excelentes para a criação de gado. Também levei animais
por vias aéreas: de uma só vez, transportei 39 bacorinhos (leitões) num pequeno
avião Bonanza B-35, para fazer criação numa ilha localizada próximo á pista do
Anatum I, a 30 minutos de vôo abaixo do Anatum II, também de minha propriedade”.
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